segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Pensar em 2019 Me Dá Pesadelos

   Somos, nós brasileiros, um povo bem tranqüilo ( assim mesmo, com trema ). Os mais cínicos diriam "indolente", "frouxo", ou até "covarde". É fato que nunca tivemos uma grande revolução ou guerra civil ( e há mesmo quem lamente isto, e culpe esta lacuna por boa parte de nossos males ) e mesmo os focos de resistência violenta a isto ou àquilo são espasmódicos, episódicos. Poderia a "tempestade perfeita" que se avizinha em 2019 romper com essa tradição?

   Já são mais de 30 anos de redemocratização, em que a liberdade de imprensa expõe nossos defeitos diariamente nos jornais, na tv e, nas últimas duas décadas, na internet. Os serviços públicos, principalmente a Saúde e a Educação, se deteriorando a olhos vistos; os privilégios das classes abastadas, cada vez mais abastadas, mesmo em meio à nossa sucessão de graves crises econômicas; não bastassem os privilégios, na prática medievalmente hereditários, escândalos mastodônticos de corrupção se sucedem como os capítulos diários de nossas populares novelas.
   O Partido dos Trabalhadores, com todos os seus defeitos ( e eu mesmo nunca votei neles para presidente no primeiro turno ), pelo menos neste quesito tem um currículo digno de aplausos: pode-se questionar os reais objetivos, os meios adotados e o preço pago por isto, mas efetivamente diminuíram o abismo que separa nossos ricos e nossos pobres, combateram a mortalidade infantil e a miséria, puseram comida na mesa de muita gente que não tinha o que comer; mesmo na hora de cobrá-los por seus piores erros, desta virtude eu não vou esquecer: Cristo ensinou: "Dai a César o que é de César".

   Porém, justamente seu grande sucesso eleitoral erigiu um dos pilares de seu fracasso: 13 anos no poder significaram que toda uma geração que hoje tem vinte e poucos anos ou menos não lembra e não viu o Brasil pré-PT. Não são capazes de, pela própria vivência, avaliar o progresso feito; não tendo feito a árdua caminhada monte acima, abrem os olhos e começam a tatear o mundo, e veem apenas que o cume ainda está longe. Essa geração foi facilmente sequestrada pela onda mundial de uma Nova Direita de tendências neoliberais e, ocasionalmente, protofascista, e acha que todos os males da sociedade, mesmo aqueles que herdamos dos portugueses, são culpa do lulopetismo bolivariano gramscista marxista comunista da petralhada. Ouço-os repetir e insistir, convictos, que incompetência, medidas desastrosas e corrupção são monopólio da esquerda. Alimentados pela linda e equivocada arrogância da juventude, armados com os sofismas de YouTubers ignorantes ou interesseiros ( ou ambos ), eles fazem fila para pular no abismo do profundo arrependimento. Eu faço absoluta questão de ressaltar: a direita, o conservadorismo e o neoliberalismo são pautas perfeitamente legítimas, e a existência de grupos discordantes é saboroso alimento para qualquer democracia saudável; o que lamento é ver tudo fora dessa vertente ser classificado de comunismo, o progressismo e o trabalhismo serem renegados, demonizados, e todas as suas facetas serem ameaçadas de exclusão do debate. Essa é a maldição que paira sobre nós.
   Aos jovens curiosos, não é necessário acumular muitos anos de vida ou muitas páginas de leitura para perceber algo tão evidente: a própria cultura popular registrou o que era o Brasil antes do PT, e a internet disponibiliza alguns destes testemunhos: vejam, por exemplo, a trama, ou mesmo a própria abertura de "Vale Tudo", sucesso na virada de 1988 para 1989, talvez a última grande novela a comentar a sociedade de seu tempo: o enredo pegou a injustiça, corrupção e impunidade que já eram empurrados pela nossa goela abaixo e vomitou de volta na cara de nossa sociedade no horário nobre da Globo; O mesmo YouTube que te seduz com teorias da conspiração pode resgatar o emocionante desfile de carnaval da Beija-Flor de 1989 com o enredo "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia!", que marcou uma então criança com uma força que só encontrou rival 30 anos depois, com a emoção de ver a Tuiuti desfilar este ano. Ambas foram injustiçadas com vice-campeonatos, mas foram dois desfiles que honraram o Sambódromo e a arte que os concebeu. Não, meus jovens amigos; com todos os seus graves erros, não foi o PT que afundou o Titanic, matou Kennedy ou inaugurou a bagunça institucional no Brasil;
   Quem prestou atenção nas datas ou tem idade para lembrar, sabe que foi nesse clima que chegamos às eleições diretas para presidente de 1989, as primeiras em quase 30 anos. Naquela ocasião, escolhemos Collor: um político desconhecido que, de repente, virou o super-herói que iria resolver os problemas do país; alguém que não dava detalhes de seus planos nem comparecia a debates, mas mesmo assim ficou em primeiro lugar nas pesquisas e, mesmo sendo de um partido nanico, conseguiu chegar à presidência anunciando que ia criar um Brasil novo, enterrando a velha política corrupta com um jeito novo de fazer as coisas. Jovens amigos, isso soa familiar?

   Collor ensaiou algumas medidas neoliberais. Fernando Henrique Cardoso foi o próximo a tentar algo nesse sentido. Temer, com seus insensíveis Teto de Gastos e Reforma Trabalhista foi mais um. Todas as 3 tentativas redundaram em baixa popularidade, o que está longe de ser raro entre governantes que adotam esta linha. Pinochet, por exemplo, só conseguiu implantá-la no Chile porque era uma ditadura que não permitia dissidências. Em texto anterior, já mencionei que "40 anos depois, os britânicos já perceberam que as promessas neoliberais da Era Thatcher não se materializaram: 76% querem re-estatizar as ferrovias; 77% querem que o poder público reassuma a eletricidade e o gás; 83% pedem a volta do fornecimento estatal de água!". A eleição de Macri na Argentina foi saudada pelos neoliberais do Brasil, que agora colocam a crise em nosso vizinho-irmão na conta da "social-democracia".
   Pois o Brasil resolveu desta feita recolocar o neoliberalismo na presidência pelo voto. E não é um neoliberalismo qualquer: descartamos os Alckmins, os Meirelles e os Amoêdos; renegamos os genéricos e prestigiamos Bolsonaro e sua economia comandada por legítimos "Rapazes de Chicago". O próprio capitão já falou na necessidade de apoio dos governadores recém-eleitos para as inevitáveis medidas amargas; já falou em Reforma da Previdência e em auditoria nos programas sociais; nada de "neoliberalismo Nutella", vem aí o "neoliberalismo de raiz", com pedigree e tudo.

   Ai de nós... Ai de nós!

   Já escrevi um pouco em textos anteriores sobre como acredito que isto é um grande, grande equívoco. Numa oligarquia convicta de 500 anos, em meio a uma das mais graves crises de nossa história... Falar de neoliberalismo neste momento é se preocupar com guardanapos de linho bordados à mão quando está faltando comida! Como falar em "austeridade" em meio a uma crise com milhões de desempregados e subempregados? Como falar em "arrocho" quando já o temos, na prática, há anos? Como empurrar medidas neoliberais e falar em "menos Estado" em meio a isso tudo? E como pedir mais sacrifícios do povo enquanto vemos castas continuarem seu banquete? A Suprema Corte de nosso país, aqueles que nos julgam, não têm olhos para nossa realidade? Moram em outro continente? Não têm nem mesmo compaixão? Não estão vendo a crescente onda anti-establishment que cresce desde a Redemocratização, levantou fervura em 2013, não se satisfez com o Impeachment, elegeu Bolsonaro e muitos de seus apoiadores e continua borbulhando? A tendência é que Temer sancione o aumento para o STF. Alegando a necessidade de reposição salarial, o teto do funcionalismo, que já ganha mais de 33 salários mínimos ( isso sem contar os penduricalhos, como o famigerado auxílio-moradia ) pede, só de aumento, o equivalente a 6 vezes o valor com que o governo diz ser possível sustentar uma família de 4 pessoas ( isso para quem tem sorte, porque metade de nossa população tem renda menor que 1 salário mínimo ). É nesse país que se fala em "austeridade", "medidas amargas", "sacrifícios"? É nele que queremos ver os "Rapazes de Chicago" em ação?

   Continuo tentando dar uma chance ao governo Bolsonaro, continuo ficando cada vez mais preocupado, angustiado mesmo; Ele ainda nem assumiu e já nos custa os profissionais cubanos do "Mais Médicos", quando poderia muito bem ter esperado a posse e preparado um "plano b" antes de externar com tanta veemência sua insatisfação com os termos do mesmo: um grave problema, do tipo que pode literalmente custar vidas, criado por falas absolutamente gratuitas; E para os apoiadores do presidente eleito que comemoram o grande número de inscrições no edital criado às pressas, recomendo prudência: esperemos para ver a taxa de desistência e se os convocados realmente irão para as periferias das cidades e o interior do país, como se desejaria. Aliás, será que a suposta "doutrinação de esquerda" nas instituições de ensino é um problema realmente relevante? Porque se ela está acontecendo há 3 décadas, como argumentam, como Bolsonaro e uma enorme legião de aliados foi eleita? Ou a doutrinação está fracassando completamente ou ( e é nisto que creio ), ela nunca existiu como movimento organizado, como uma ação sistemática; Num país onde temos escolas sem teto nem banheiro, sem professores e com profissionais sem especialização, sem salário justo ou mesmo o antigo respeito da sociedade, será que devemos voltar nossa atenção para projetos como o "Escola Sem Partido"?
   Pensando no despreparo de Bolsonaro e de grande parte de quem o cerca e da bancada que o apoia, temendo ainda a cegueira ideológica de outra parcela deles, fico temeroso dos haraquiris diplomáticos ou das tesouras neoliberais da equipe econômica alcançarem de alguma forma nosso agronegócio. Estamos em meio a um déficit asfixiante nas contas públicas que se repete há anos, o único setor com saúde é o agronegócio, que praticamente está carregando o país nas costas. Mexer em qualquer incentivo ou subsídio neste momento seria uma tolice suicida da pior espécie, daquela que, mesmo finalmente percebida, não pode ser revertida com uma canetada: neste setor, as medidas levam meses para começar a dar frutos e render colheitas. Temo um governo de recuos desastrados, de tropeços e de corridas atabalhoadas para tentar remendar estes tropeços; Insisto: está muito difícil manter algum otimismo com o governo Bolsonaro... Infelizmente, escolhemos esta via quando fomos às ruas em 2013, e perdemos o último retorno com o fim do primeiro turno das eleições. Agora, é chorar o leite derramado e rezar de joelhos. Como diz o ditado japonês que gosto de citar: "se engolir veneno, lamba o prato!".

   ...E assim voltamos ao tema com que abri o texto: vejo uma "tempestade perfeita" se formar; Pedir mais sacrifícios aos mais sacrificados enquanto bancos alcançam lucros bilionários e nossas autoridades que já ostentam seu privilégio pedem aumento? Em meio a uma onda cada vez maior e mais preocupante de insatisfação e instabilidade, onda esta alimentada por mídias sociais, tanto as cultas, justificadas e moderadas quanto as ignorantes, hipócritas e agressivas, unânimes em seus alvos? Animal acuado ataca; O povo em desespero que pediu a cabeça de seu rei outrora aclamado e que abriu a porta para o estranho que se apresentou como a única opção, a última novidade não testada, o que fará se convencer-se que foi enganado mais uma vez, uma última vez?

   A atual conjuntura me lembra aquilo que leio sobre os antecedentes da Revolução Francesa, e por isso recordei-me da charge que encerra essa postagem, muito utilizada em textos sobre os antecedentes históricos do processo. A gravura retrata o povo, com sacrifício, carregando nas costas as classes privilegiadas. A legenda diz: "Devemos esperar que isto acabe logo"; Realmente, logo teríamos o povo tomando a Bastilha, e os anos de violenta turbulência que se seguiram à ruptura.
   O que nos aguarda no Brasil de 2019? Eu só consigo antever dificuldades... Estaria o povo brasileiro destinado a finalmente fazer a tal revolução preconizada por alguns? O que resultaria dela? E se Bolsonaro, fiel à sua formação, discurso e aliados, tentar responder qualquer tumulto com a mão pesada da autoridade? Como isso repercutiria internacionalmente na conjuntura de hoje? Ou será que, fiel à sua história, o rebanho de ovelhas dará um longo suspiro, resmungará algo e voltará sua atenção ao cotidiano pasto? O "gigante adormecido" mais uma vez vai acordar, beber água, fazer xixi e voltar para a cama? Seria o destino de Hy-Brasil em "As Aventuras de Erik, o Viking" (1989) um presságio? Todas as hipóteses acima me dão pesadelos... Companheiros de viagem, eu estou com medo de 2019!

#RezemPeloBrasil     #MedoDe2019     #2019MeDáPesadelos





sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Algumas Preocupações Concretas com o Governo Bolsonaro

   Passadas as eleições, agora só cabe a nós, brasileiros, torcer para que a gestão Bolsonaro tenha mais acertos do que tropeços. Ame-o ou rejeite-o, ele é nosso presidente, e qualquer democrata verdadeiro tem a obrigação de dar-lhe o benefício da dúvida. Infelizmente, quanto mais eu ouço, mais difícil fica ser otimista. Antevejo a possibilidade de grandes erros, alguns talvez irreparáveis, e só me é possível desejar ardentemente estar errado, rezar para ser surpreendido positivamente, e que, de alguma forma, as coisas acabem dando certo.

   Eu já disse que um governo Alckmin, Meirelles ou Amoêdo não seria do meu agrado, mas eu não teria temores tão primários quanto os que me inspiram a gestão que vai tomando forma. Bolsonaro, boa parte de sua cúpula e a enorme bancada eleita para o Congresso são, em grande parte, despreparados e inexperientes. O meu temor não vem pelo seu viés ideológico, do qual discordo, mas pelo fato de ver uma equipe de leigos tentar fazer uma cirurgia cardíaca. Poderiam até ser gente honesta e bem-intencionada, mas mesmo assim eu ainda escolheria médicos formados e bem treinados.

   Começando pelos grandes rumos, eu acho que uma política neoliberal de corte de gastos e diminuição do Estado, da qual eu já discordo, seria um grande, grande equívoco no Brasil de hoje. Sim, enfrentamos um déficit aterrador. Sim, precisamos combater a corrupção, que nos custa muito. Precisamos ainda mais evitar o desperdício com supersalários, privilégios, penduricalhos e aposentadorias fora da realidade em nossos três poderes; Acima de tudo isso, nosso verdadeiro e maior problema é crônico: má gestão, incompetente e ineficiente; precisamos, sim, diminuir a burocracia e ter mais transparência, ambas boas ferramentas para lidar com a questão, mas isso não está automaticamente ligado ao neoliberalismo econômico;

   O neoliberalismo econômico é uma pauta legítima, mas que no Brasil atual teria um efeito autodestrutivo. Somos, eu já disse, uma oligarquia convicta há 500 anos. Sempre, sempre favorecemos os amigos do rei, seja um beija-mão trocado por títulos de nobreza, seja na forma de doações de campanha trocadas por exonerações fiscais e subsídios. É perfeitamente legítimo e até salutar substituir este modelo por um de verdadeira livre concorrência, mas isso é um projeto de longo prazo, não algo que se faz atabalhoadamente e em meio a uma das maiores recessões que já experimentamos. Estão se preocupando com guardanapos de linho bordado para quem não tem comida;

   Permitam-me uma comparação bem rudimentar: poucas pessoas discordariam de que o ideal é os pais criarem filhos independentes, capazes de cuidarem de si mesmos; quem, porém, defenderia que recém-nascidos fossem deixados à própria sorte? É preciso guiar-lhes pela mão até o momento em que tenham condições de seguirem sozinhos; Não é justo um casal de vizinhos querer vir dizer que temos que deixar nossos filhos acharem seu próprio caminho quando os deles têm trinta anos e o nosso tem apenas dois. "Quem sabe a quentura da panela é a colher que mexe". Achei muito coerentes as palavras do economista Ha-Joon Chang quando esteve no Brasil no início deste ano:


Hoje, quando olhamos para os países ricos, em sua maioria, eles praticam o livre comércio. Por isso, é comum pensarmos que foi com esta receita que eles se desenvolveram. Mas, na realidade, eles se tornaram ricos usando o protecionismo e as empresas estatais. Foi só quando eles enriqueceram é que adotaram o livre comércio para si e também como uma imposição a outros Estados. O nome do meu livro, "Chutando a escada", faz referência a um livro de um economista alemão do século XIX, Friedrich List, que foi exilado político nos Estados Unidos em 1820. Ele critica a Inglaterra por querer impor aos EUA e à Alemanha o livre comércio. Afinal, quando você olha para a história inglesa, eles usaram todo tipo de protecionismo para se tornar uma nação rica. A Inglaterra dizendo que países não podem usar o protecionismo é como alguém que após subir no topo de uma escada, chuta a escada para que outros não possam usá-la novamente.


   Parece faltar aos neoliberais brasileiros uma essencial pitada de pragmatismo; Você pode, por exemplo, ser a favor do fim do protecionismo, mas se seus parceiros o praticam e você não, estará expondo seu país a um verdadeiro linchamento em praça pública. Até mesmo Olavo de Carvalho, talvez o mais influente pensador a traduzir para o brasileiro a Nova Direita que se populariza mundialmente, tem opinião similar à minha nesta questão*. O Brasil é basicamente um exportador de commodities primárias, o que sempre nos deixa vulneráveis ( lembram-se do que aconteceu com nossa cana-de-açúcar e nosso café? ), e atualmente passamos pelo que talvez seja a maior desindustrialização da história da humanidade: a participação do setor na nossa produção, que já foi de mais de , diminuiu para pouco mais de 10% e continua caindo. Não fique escravo de alguma teoria econômica da qual você seja adepto! Este é o momento de diminuir subsídios e cortar exonerações?

   Quanto ao agronegócio, digam o que quiserem, é a tábua de salvação que vem impedindo o Brasil de se afundar ainda mais miseravelmente. Para o bem e para o mal, cada vez mais encarnamos o papel de "celeiro do mundo". Podemos, felizmente, avançar ainda mais no setor; Por mais urbano que eu, pessoalmente, seja, nunca podemos esquecer que o campo vive sem a cidade, mas a cidade não sobrevive sem o campo; pois eu proponho que adotar, na atual conjuntura, uma política neoliberal de diminuir os incentivos que temos, seria jogar gasolina no incêndio, verdadeiramente uma tentativa de suicídio;

   Temos ainda a questão ambiental. Uma riqueza realmente única e, uma vez destruída, irrecuperável. Já perdemos nosso Museu Nacional este ano, vamos também deixar a Amazônia consumir-se? O que nos resta de Mata Atlântica? O que ainda temos de nossa preciosa e colorida cultura indígena? Não valorizar esta herança é cuspir na cara de quem nos pariu e amamentou. Lembro-me da frase atribuída ao Greenpeace que vi numa faixa em minha escola em meio à expectativa pela Eco 92, e que nunca me deixou:

Quando a última árvore tiver caído,
quando o último rio tiver secado,
quando o último peixe for pescado,
aí vocês vão se dar conta que dinheiro não se come;

   Voltamos então, inexoravelmente, à questão do despreparo e inexperiência de Bolsonaro e sua equipe: falar em fundir os dois ministérios, a princípio antagônicos, já é um erro; mesmo que decidissem priorizar o agronegócio, poderiam ao menos tentar manter as aparências para não prejudicar nossas exportações com embargos de países preocupados com o meio ambiente; o mero anúncio desta medida equivocada já colocou todas as decisões do futuro presidente sobre o tema sob os holofotes do escrutínio dos ambientalistas de todo o planeta; e como se não bastasse a gafe em si, ela se repete: a fusão foi aventada durante a campanha, mediante críticas, houve um recuo. Novamente proposta após a eleição, foi novamente criticada, e novamente fala-se em recuo; Isso não é bom para o país; Estas falhas operacionais primárias também se verificam na simples comunicação com a imprensa, numa avalanche de especulações e desmentidos. Tratar a grande mídia tradicional como inimiga já de saída não pode ajudar a resolver a questão, e ainda tem cheiro de autoritarismo. Entendem porque tenho dificuldade de justificar para mim mesmo qualquer otimismo?
   Pois se o próprio FMI já não teme fazer críticas ao modelo neoliberal, porque ele poderia piorar a concentração de renda e valorizar o capital financeiro especulativo em detrimento do capital produtivo e dos investimentos de médio e longo prazo;
   Ainda vejo muita gente insistindo na falácia de que privatizar é uma solução mágica; Que país entrega a outrem as decisões sobre suas riquezas estratégicas sem pagar um alto preço por isso? O Brasil precisa refletir e agir prudentemente com seu petróleo, a aquisição de grandes extensões de terra por grupos estrangeiros, Amazônia, Embraer, o SGDC-1 ( nosso 1º satélite geoestacionário ), a base de Alcântara, o setor elétrico... Vale a pena trocar estes coringas de nossos netos por um pouco de dinheiro hoje? Depois de 40 anos, o povo britânico viu que as promessas neoliberais da era Thatcher não se materializaram: 76% querem reestatizar as ferrovias; 77% defendem a retomada da eletricidade e do gás; 83% desejam a volta do fornecimento de água estatal!
   Aqui mesmo, em nosso Brasil: A Vale foi premonitória em tirar o "Rio Doce" do nome, já que a tragédia de Mariana, que ela permitiu que ocorresse e pela qual ainda não se redimiu, matou o rio que a batizara; A telefonia e a internet no Brasil, apesar do invejável grande mercado, não oferecem um bom serviço, e mesmo assim as tarifas estão entre as mais caras do mundo; Nossas agências reguladoras são ocupadas por ex-executivos do setor que deveriam fiscalizar; Em meio a uma das maiores crises de nossa história e uma inflação de 4,5% ao ano, bancos chegaram a praticar juros de mais de 400% em certas modalidades - isso legalmente! - e agora há quem comemore que tenham baixado para ( ainda incivilizados ) 280%. Insisto: em meio à nossa gravíssima crise, o lucro dos grandes bancos subiu 21% em 2017, chegando a quase 65 bilhões. Num país em que 27,7% da população está sem emprego ou subempregada, em que metade da população vive com menos de um salário mínimo, em que os 6 cidadãos ( não são 6%; são seis indivíduos! ) mais ricos detém a mesma riqueza que esta metade mais pobre de 100 milhões de pessoas, é nesse país que se fala em neoliberalismo, em menos interferência do Estado na economia, em desregulamentação? Num país onde ¾ das pessoas não têm domínio pleno da leitura e das operações matemáticas, onde escolas públicas às vezes não ensinam nem mesmo a ler e escrever; neste país onde o filho de ajudante de pedreiro é ajudante de pedreiro, a filha de doméstica é doméstica, o filho de médico é médico e o filho de juiz é juiz, é neste país que querem falar em meritocracia? Não estariam querendo instalar internet em um feudo medieval? Amigos, uma pitada de pragmatismo! Evoco mais uma vez Lacordaire: "Entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo, é a liberdade que oprime, e a lei que liberta"!

   Nem tanto ao mar, nem tanto à terra; Nem Estado mínimo, nem Estado máximo: Estado necessário, como diria Ciro Gomes. Em pleno ano da graça de 2018, metade da população brasileira não tem saneamento básico. O empreendedorismo individual resolve esse problema? A iniciativa privada? Veja os grandes escândalos mundiais da última década: Enron, Lehman Brothers, Bernie Madoff... todas instituições privadas. Novamente relembro-lhes de exemplos aqui mesmo do Brasil: A JBS, a Odebrecht, a OAS... são estatais? Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça! Não se deixe enganar pelo maniqueísmo, pelas frases feitas! Fuja das teorias cegas que ignoram a realidade! Cuidado para não escolher soluções rápidas e erradas! Prudência! Moderação! Diálogo! "Devagar com o andor, que o santo é de barro!". Afinal, são mais de 200 milhões de destinos sobre a mesa.

   Eu também tenho críticas à postura beligerante e intolerante de Bolsonaro e parte de sua cúpula. Acho que mesmo entre seus eleitores, há quem compartilhasse de minha esperança de que fosse apenas retórica de campanha. Ainda não vemos sinais de moderação, o que é preocupante. Só para lembrar, somos o país que já teve um Esquadrão da Morte; um país que ainda não sentou para conversar sobre o que realmente significou a ditadura militar instaurada em 1964, uma omissão que voltou para assombrar-nos; o país que mais mata suas minorias sexuais, o país em que há 130 anos ainda era permitido por lei que um ser humano fosse dono de outro; um presidente com tal postura incisiva pode abrir uma sinistra caixa de Pandora, soltando as amarras de uma legião de candidatos a "guarda da esquina", conforme temidos por Pedro Aleixo.

   Admirador de Trump, Bolsonaro acaba tomando uma postura de alinhamento aos americanos que não me agrada por seu tom servil. Eu mesmo já mencionei a grande admiração que tenho pelos nossos irmãos ao norte, sua história, sua cultura, e o enorme e sincero carinho que tenho por seu povo, mas um candidato à presidência de um país, nesta condição, bater continência para a bandeira de outro e puxar coro de "USA! USA!" não é uma boa postura. Comunicar-se pelo Twitter é simpático, mas não deve ser o principal canal de comunicação de um líder, e deve-se tomar cuidado com falas impulsivas: a palavra de um presidente tem peso: dizer e desmentir, declarar e recuar, por si só, podem afetar as questões de Estado.

   Entre as muitas críticas de Bolsonaro ao PT, o capitão acusou-o de uma política externa com viés ideológico; Nosso presidente eleito que me perdoe, mas vendo-o falar, eu só posso concluir que ele faz o mesmo, simplesmente trocando os sinais. Em seu alinhamento com o governo americano, ele vai cometer a loucura de queimar as pontes que com tanto esforço construímos?

   Eu já fico angustiado de pensar em Bolsonaro, que não vai nem a debates e sabatinas porque sabe que não se sairá bem, indo negociar algum interesse nacional com um Trump. Imagino o clima desconfortável de alguém com suas posições e histórico de opiniões indo encontrar-se com uma Merkel. Como se sairá no tradicional discurso do Brasil na abertura da Assembleia Geral da ONU? Como se não bastasse, vejo-o colocar minas terrestres em seu próprio caminho:

   Trump está esboçando uma guerra comercial com a China. É sábio nós nos metermos nesta história, comprando uma briga que não é nossa com um de nossos grandes parceiros comerciais? Um editorial na versão em língua inglesa do jornal estatal, o China Daily, já demonstrou a irritação de Beijing com a postura de nosso presidente eleito, e avisou Bolsonaro que adotar uma postura de alinhamento com Trump e não respeitar os acordos com a China pode ser danoso à economia brasileira, que está tentando sair de uma grave recessão.

   Bolsonaro reiterou sua promessa de campanha de que pretende transferir nossa embaixada em Israel para Jerusalém, seguindo o exemplo dos Estados Unidos e da Guatemala ( O Paraguai seria o terceiro, mas acabou revertendo a decisão ). Bolsonaro também está cercado de gente pró-Israel, incluindo Joice Hasselmann e boa parte dos líderes evangélicos. Lamento profundamente este erro: primeiramente, porque ele mancha nosso histórico diplomático de buscar o diálogo e a conciliação; Perderemos nossa invejável posição de mediador neutro: somos nós que estamos mexendo as peças no tabuleiro, nós que estamos desafiando o status quo. E pra quê? Não íamos fazer uma política externa sem viés ideológico? A qual interesse nacional prático isto serve? É um marco verdadeiramente trágico, estou torcendo para que o presidente eleito recue...
   Num segundo momento, isso pode trazer complicações econômicas, na forma de sanções por países árabes: nossa exportação de frango pode ser bastante prejudicada. Temos ainda a possibilidade de virarmos alvo de retaliações violentas, de terrorismo. Tudo por um inepto capricho ideológico / religioso... Mais uma vez o despreparo de nosso presidente e de sua cúpula me deixa preocupado.

   Bolsonaro também dá a entender que continuará, como Temer, virando as costas para a Venezuela, em mais uma demonstração de falta de visão geopolítica e estratégica de sua equipe. Independentemente de sua opinião sobre o regime Maduro, não poderíamos fazer muito bem com uma aproximação? Não foi o que os Estados Unidos conseguiram fazer com nossos irmãos chineses ao longo dos anos 1970, com a visita de Nixon, notório anticomunista, à China de Mao, partidas de pingue-pongue e, finalmente, gradual abertura do mercado sob Deng Xiaoping? Pois virar as costas para nossos irmãos neste momento de dificuldade, além de uma vergonhosa falta de solidariedade, só agravará sua crise interna, o que acaba derramando-se em mais problemas e conflitos e até em lamentáveis incidentes de xenofobia em nossa própria e desamparada Roraima. E não esqueçamos a geopolítica: precisando de ajuda, abandonado por nós, Maduro volta-se agora para China e Rússia, trazendo-os para nossa vizinhança. Em contrapartida, Trump flerta com a Colômbia, vizinha e rival da Venezuela, acenando com sua entrada na OTAN, tudo isto bem aqui ao lado; É sábio continuarmos de costas enquanto estas forças se mexem no tabuleiro em que estamos? Obrigam-me a mais uma vez apelar para uma pitada de pragmatismo.

   Isto é só para começo de conversa; também escuto temerosas propostas em outras áreas: Reforma da Previdência? Precisamos urgentemente de uma, mas devemos pedir ao duque que abra mão de um de seus castelos antes de pedir ao camponês que entregue metade de seu pão; Criacionismo? Sim, na aula de filosofia; Educação Sexual? Sim, de forma adequada à faixa etária, para evitar doenças, gravidez precoce e pedofilia; "Escola sem Partido"? Escolas Militares? Ampliar as excludentes de ilicitude? Facilitar o porte de armas? Priorizar o enfrentamento na ponta final, no varejo, em detrimento da inteligência? O Coliseu está pedindo mais sangue?


   Mesmo assombrado por tantas inquietações, inclusive as de ordem pessoal, continuo rezando pelo nosso presidente eleito; Que minhas preocupações não passem de alarmismo, que os problemas não se concretizem, que tenhamos uma pacificação nacional, e que Deus conduza Bolsonaro. Por favor...



* Olavo de Carvalho | Protecionismo
 https://www.youtube.com/watch?v=Wo_nXzS5Gpc


Fontes: 

A lúcida entrevista de Ha-Joon Chang ao "El País":
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/05/economia/1515177346_780498.html

Algumas objeções ao neoliberalismo, por pesquisadores do FMI (em inglês): 
https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/pdf/ostry.pdf

Artigos em jornais ingleses questionando as privatizações no país (em inglês):
https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jan/09/nationalise-rail-gas-water-privately-owned

https://www.independent.co.uk/voices/privatisation-failure-energy-water-railways-public-services-take-back-control-labour-john-mcdonnell-a7775216.html