quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Os 50 Anos do AI-5

   Eu nasci em meio à Abertura e cresci em meio à Redemocratização do Brasil; As ideias, os discursos, os movimentos, o clima na sociedade... Mesmo sem compreender a profunda beleza de tudo, eu respirava o "cheiro da nova estação" que Belchior já detectara vir vindo no vento anos antes. Mesmo sem entender bem o significado daquilo, minha memória gravou o grito de "Diretas já!", as muitas execuções de "Coração de Estudante"; chorei com Tancredo, lembro de Fafá de Belém cantando o hino nacional em homenagem a ele... à medida que crescia, eu estudava, analisava e passava a entender melhor o contexto dentro do qual cheguei ao mundo e cresci; a explicação para o selo de censura antes dos filmes no cinema, o porquê de cantarmos o hino nacional na escola enquanto um aluno e uma aluna hasteavam a bandeira... Pulando repentinamente para o resultado da equação, fico pesadamente triste em chegar aos 50 anos do Ato Institucional número 5 na perspectiva de empossarmos um presidente que alegre e reiteradamente defende a Ditadura Militar, que clara e abertamente defende a tortura e, principalmente, que nunca renegou claramente estes antigos posicionamentos públicos tão injustificáveis.
   É humanamente impossível dizer até que ponto minha índole pessoal coincidiu com o momento histórico do meu país, ou se por ele foi ela moldada; o que sei é que tornei-me alguém que ama a História, e que instintivamente pende para a defesa da Democracia e de sua querida irmã, a Tolerância. Se formos mais fundo, penso que em seu âmago, ambas tem a ver com a arrogância; na verdade, com um esforço em renegá-la: precisamos formar opiniões, defendê-las, tomar decisões e agir, mas sempre devemos conservar conosco pelo menos uma faísca de humildade que insista em repetir para nós que talvez estejamos equivocados; que talvez o caminho escolhido seja ruim; que talvez precisemos dar razão ao outro e voltar atrás.
   Eu realmente acho que este é o fio condutor da Democracia, da República, da Presunção de Inocência, do Iluminismo, da Separação dos Poderes, do velho "duas cabeças pensam melhor que uma", e até do "amai o teu próximo como a ti mesmo" que Cristo nos legou, e do "faça com os outros como queres que façam contigo" que Jesus, Confúcio e outros pregaram; Rejeitar a arrogância cheia de si é o denominador comum de todas estas louváveis lições. Se "o inferno é o outro", como disse um Sartre lamentavelmente correto, são sentimentos como estes que permitem que o homem, animal social, viva e conviva com seus semelhantes que são diferentes.
   Infelizmente, a tolerância não é uma lei da física, e rotineiramente falhamos em aplicá-la. Aqui no Brasil, a Ditadura Militar que durou de 1964 a 1985 ( e às vezes penso se não seria melhor dar 1989 como o ano de seu término ) é o mais recente exemplo da rejeição sistemática da democracia enquanto filosofia de governo. Já cresci, li, amadureci, e sei que as coisas não são preto-no-branco; é possível que alguém em boa fé apoiasse a derrubada de Jango, embora eu a considere um golpe. É possível que várias autoridades bem-intencionadas, inclusive militares, tenham tentado consertar ou amenizar o que se passou de ruim naquelas fatídicas duas décadas. Com tudo isso, o regime não pode ser absolvido no Tribunal da História: cometeu erros graves e dolosos, inclusive contra a própria vida humana.
   Nos primeiros quatro anos, de 1964 a 1968, período entre um irônico "1º de abril" e uma sinistra "sexta-feira 13", vivemos o que Elio Gaspari chamou de "Ditadura Envergonhada": um regime que não queria reconhecer-se autoritário. Gozamos de uma certa fachada de normalidade, de liberdade; tanto internamente quanto no exterior, o governo proativamente buscava renegar a pecha de "ditadura". Os editoriais dos jornais no dia seguinte ao Golpe, as revistas semanais, Lacerda na França, todos insistiam que os que haviam agido o fizeram justamente para salvar a democracia de quem a ameaçava: os comunistas! Porém, as eleições presidenciais de 1965 não vieram, o governo foi adotando postura cada vez mais radical, e a pouca liberdade que concediam era usada para atacá-lo; Em meio ao turbilhão mundial de 1968, o Brasil também contribuiu com seus próprios conflitos. Não é custoso tolerar a liberdade de quem concorda conosco ou baixa a cabeça para nós; Na hora da verdade, tendo que decidir afinal entre retomar o caminho da Democracia ou assumir a Ditadura Escancarada ( mais uma vez Gaspari ), os homens fardados no poder escolheram a segunda opção. O Ato Institucional número 5 não deixava dúvidas: não havia mais meio-termo ou diálogo;
   A gota d'água para o traumático rompimento é tão singela, desimportante, quase cômica diante da brutalidade da reação, que muitos a esqueceram ou completamente ignoram: o Congresso negou ao governo a permissão para processar o deputado Márcio Moreira Alves, que em discurso na Câmara em 2 de setembro havia conclamado o povo a demonstrar seu repúdio à facção mais truculenta das Forças Armadas deixando de participar das comemorações pelo Dia da Independência e demais confraternizações entre civis e militares, inclusive exortando as moças a não dançarem com cadetes e não namorarem com jovens oficiais, boicote que deveria durar até que os próprios alvos se sentissem compelidos a falar contra as arbitrariedades de seus superiores;
   Nas gravações em áudio da sessão que decidiu pela promulgação do Ato, o vice-presidente, um civil, famosamente argumenta que o perigo de um governo com tais poderes não eram homens como Costa e Silva, mas "o guarda na esquina"; Somente o próprio Pedro Aleixo poderia dizer se era uma tentativa prudente de opor-se ao Ato, amenizando essa discordância com a afirmação de crença na boa-fé e retidão do presidente, ou se realmente se preocupava apenas com possíveis abusos nos escalões mais baixos; fato é que a caixa de Pandora foi aberta, e o Brasil tinha mais "guardas nas esquinas" do que se poderia imaginar. O Delegado Sérgio Fleury e o Coronel Brilhante Ustra, por exemplo.
   Nos anos seguintes, cognominados didaticamente de "Anos de Chumbo", pessoas foram caladas, presas, torturadas e mortas. Não eram excessos ocasionais de agentes mais afoitos: era algo rotineiramente praticado e sistematicamente tolerado. Os alvos destes excessos não eram só os opositores que pegaram em armas, os guerrilheiros ou os terroristas da esquerda ( e todos estes existiram ); a realidade histórica ostensivamente desmente quem repete esta falácia, e mesmo estes não mereceriam as torturas ou a execução deliberada; Juristas, jornalistas, políticos, pessoas que estavam no lugar errado na hora errada, até mesmo militares que tentaram moderar os extremismos e crianças estão entre os que foram constrangidos, intimidados, aposentados, espancados, "suicidados" ou desapareceram; Para mencionar somente alguns dos casos mais emblemáticos, o político Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog, o operário Manoel Fiel Filho, o Capitão Sérgio Macaco e o diplomata José Jobim; Jovens opositores do regime como Massafumi Yoshinaga, Stuart Angel e Maria Auxiliadora Lara Barcelos também não mereciam de forma alguma o destino que tiveram. Nem de longe... E dizer que "não mereciam" é embaraçosamente anêmico diante da humilhação e desumanidades a que foram submetidos por seus captores.
   Se a ditadura brasileira matou menos que a de seus vizinhos e compadres, se ela matou menos do que se poderia esperar de uma hipotética ditadura comunista, mesmo assim não poderia ser chamada de "ditabranda", como sugeriu um infeliz editorial de 2009 na Folha de São Paulo; Mesmo se eles tivessem torturado e matado um único indivíduo, eles já teriam torturado e matado uma pessoa a mais do que seria o limite tolerável.
   Voltando à experiência pessoal deste escriba, um período cronologicamente próximo, porém misericordiosamente distinto do descrito no parágrafo anterior, lembro-me de minha surpresa ao descobrir que, quando vim ao mundo, cheguei num Brasil onde ainda vigorava o AI-5. Eu cheguei a respirar o oxigênio do ar daquele Brasil. Foi uma constatação chocante, algo que para mim funciona quase como uma cicatriz.
   Hoje, mais amadurecido, sou capaz de pesar melhor os vários lados de uma questão, tentar conciliar várias verdades. Porém, com a mesma convicção com que Santa Perpétua apontou a jarra d'água, eu digo que 1964 foi um Golpe, que os militares e seus aliados erraram mais do que acertaram, e que alguns de seus erros são injustificáveis. Vou mais além: acredito ainda que eles mesmos, não seus defensores de hoje, mas os donos do poder de então, em seu íntimo, sabem o que aconteceu realmente; Sigam meu raciocínio: eles detinham o poder e a autoridade, de direito e de fato; eles escreveram a Constituição de 1967 e convocaram o Congresso extraordinariamente para outorgá-la; Pelos Ato Institucional número 14 e a Emenda Constitucional número 1, ambos de 1969, foi expandida a aplicação da pena de morte, além da guerra externa, para os casos de "guerra revolucionária" ou "subversiva"; Ora, se eles realmente estivessem agindo de boa-fé, não atuariam às escondidas; diante de Deus e dos homens, do mundo e da sociedade brasileira, empunhando o cetro da civilização, levariam seus opositores aos tribunais, para condená-los de acordo com seus crimes, e puni-los conforme as provisões das leis que eles mesmos haviam redigido. O segredo de seus atos é revelador: suas próprias consciências já então os acusavam, e tinham ciência do erro e baixeza incivilizada que praticavam; Deve ser estranho para os ainda vivos e lúcidos ver uma geração posterior, inclusive civis, defendendo-os não por suas intenções ou acertos, mas por seus piores erros.
   Qual poderia ser a justificativa? Governos ruins? Ora, nossa salvação é justamente termos liberdade para trocá-los, no máximo de 4 em 4 anos ( ocasionalmente menos, no caso do Brasil); Corrupção? Qualquer regime é vulnerável, a diferença é que em ditaduras o grande público não fica sabendo dela. Como se militares não fossem seres humanos, e portanto passíveis da abnegação ou egoísmo de qualquer outro! O período militar tem sua cota de corrupção, a internet está aí para quem tem curiosidade. Você sabia, por exemplo, que os detalhes do processo de decisão dos comitês de políticas monetárias dos países democráticos costumam ser divulgados em pouco tempo ( nos EUA, por exemplo, são 5 anos ), mas que as atas do Conselho Monetário Nacional, documentos referentes à política econômica e atuação do Banco Central durante a ditadura, ainda não estão disponíveis na íntegra para pesquisadores, mesmo para algumas reuniões e decisões com mais de 50 anos?
   Eu não consigo entender ou explicar estes grupos que, a partir de 2013, de forma cada vez mais desinibida pedem "Intervenção Militar". Seria despreparo? Ignorância? Masoquismo? Pois em pedir isto, não se pede um governo de direita ou de esquerda, um governo honesto ou corrupto, nenhuma atuação com viés específico: ditaduras militares não são necessariamente deste ou daquele jeito; pedir intervenção militar é gritar que não se quer escolher o próprio destino, é exigir que outros decidam o que é melhor para nós, e que nos obriguem a seguir a cartilha que eles escolherem, sem termos direito a dar opinião ou influenciar os caminhos. É pedir um governo pela violência, não pelo diálogo. É renegar conquistas alcançadas ao longo de milênios com muito suor, sangue e lágrimas; É rejeitar marcos como a Carta Magna, o Iluminismo, a Revolução Francesa, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Abolição da Escravatura, o movimento trabalhista... é renegar o próprio processo civilizatório, o progresso, o avanço. É escolher o retrocesso. É implorar para não ser dono de si. Para mim, algo muito, muito difícil de compreender.
   Eu acredito que, aliado a um saudosismo natural das pessoas, que sempre tendem a falar dos "bons velhos tempos", o Brasil também está sendo cobrado com juros e correção monetária pela forma como se deu a Anistia, por não termos julgado nossos carrascos como fizeram até nossos vizinhos de América Latina, e pela falta de conhecimento de nossa própria história, alegremente atropelada por nossa precária Educação e convicta e solenemente ignorada por nossos grandes veículos de comunicação; parecemos condenados à não-evolução, a repetir os mesmíssimos erros da mesmíssima forma... Já comparei a eleição de Bolsonaro à de Collor; há quem as compare, ainda, à eleição de Jânio; Ó Brasil, Sísifo dos Trópicos!
   Este ano, elegemos presidente alguém que, enquanto adulto em pleno gozo de suas faculdades mentais, não só defendeu a ditadura reiteradas vezes em público, diante de microfones e câmeras, como nunca se deu ao trabalho de dizer que mudou de ideia. E Bolsonaro elogia o período não pelos seus acertos, mas pelos seus erros! Dedicar seu voto no Impeachment de 2016 à memória do Coronel Brilhante Ustra, tendo o requinte de acrescentar o epíteto "o pavor de Dilma Rousseff", já escrevi, é profundamente cruel, chegando ao sadismo; Porém, minha estimada democracia nos conduziu a ele, e em nome dela, vou engolir minha profunda desaprovação e torcer e tentar cooperar para que Jair Bolsonaro, contra todos os consistentes indícios, mesmo os mais recentes, faça um bom governo.
   Caminhamos agora para as páginas dos livros de História; desejo fervorosamente que sejam preenchidas com parágrafos felizes; Seja como for, nestes 50 anos do AI-5, refletindo sobre a própria eleição de alguém com o discurso de Bolsonaro, eu gostaria de avisar o cronista: Zuenir, eu acho que 1968 acabou.



Links relacionados:

A íntegra do discurso de Márcio Moreira Alves,  cujos desdobramentos são considerados o estopim da decretação do AI-5:
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/CAMARA-E-HISTORIA/337450-ATO-INSTITUCIONAL-5--%C3%8DNTEGRA-DO-DISCURSO-DO-EX-DEPUTADO-M%C3%81RCIO-MOREIRA-ALVES-(02%27-51%22).html

"Manoel, da fábrica da Moóca para a morte", dolorido artigo sobre o caso Manoel Fiel Filho:
https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,manoel-da-fabrica-da-mooca-para-a-morte,12037,0.htm

A questão do sigilo das atas do Banco Central do Brasil:
https://www.valor.com.br/financas/5318897/historiadores-defendem-liberacao-total-de-atas-do-banco-central

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