Passadas as eleições, agora só cabe a nós, brasileiros, torcer para que a gestão Bolsonaro tenha mais acertos do que tropeços. Ame-o ou rejeite-o, ele é nosso presidente, e qualquer democrata verdadeiro tem a obrigação de dar-lhe o benefício da dúvida. Infelizmente, quanto mais eu ouço, mais difícil fica ser otimista. Antevejo a possibilidade de grandes erros, alguns talvez irreparáveis, e só me é possível desejar ardentemente estar errado, rezar para ser surpreendido positivamente, e que, de alguma forma, as coisas acabem dando certo.
Eu já disse que um governo Alckmin, Meirelles ou Amoêdo não seria do meu agrado, mas eu não teria temores tão primários quanto os que me inspiram a gestão que vai tomando forma. Bolsonaro, boa parte de sua cúpula e a enorme bancada eleita para o Congresso são, em grande parte, despreparados e inexperientes. O meu temor não vem pelo seu viés ideológico, do qual discordo, mas pelo fato de ver uma equipe de leigos tentar fazer uma cirurgia cardíaca. Poderiam até ser gente honesta e bem-intencionada, mas mesmo assim eu ainda escolheria médicos formados e bem treinados.
Começando pelos grandes rumos, eu acho que uma política neoliberal de corte de gastos e diminuição do Estado, da qual eu já discordo, seria um grande, grande equívoco no Brasil de hoje. Sim, enfrentamos um déficit aterrador. Sim, precisamos combater a corrupção, que nos custa muito. Precisamos ainda mais evitar o desperdício com supersalários, privilégios, penduricalhos e aposentadorias fora da realidade em nossos três poderes; Acima de tudo isso, nosso verdadeiro e maior problema é crônico: má gestão, incompetente e ineficiente; precisamos, sim, diminuir a burocracia e ter mais transparência, ambas boas ferramentas para lidar com a questão, mas isso não está automaticamente ligado ao neoliberalismo econômico;
O neoliberalismo econômico é uma pauta legítima, mas que no Brasil atual teria um efeito autodestrutivo. Somos, eu já disse, uma oligarquia convicta há 500 anos. Sempre, sempre favorecemos os amigos do rei, seja um beija-mão trocado por títulos de nobreza, seja na forma de doações de campanha trocadas por exonerações fiscais e subsídios. É perfeitamente legítimo e até salutar substituir este modelo por um de verdadeira livre concorrência, mas isso é um projeto de longo prazo, não algo que se faz atabalhoadamente e em meio a uma das maiores recessões que já experimentamos. Estão se preocupando com guardanapos de linho bordado para quem não tem comida;
Permitam-me uma comparação bem rudimentar: poucas pessoas discordariam de que o ideal é os pais criarem filhos independentes, capazes de cuidarem de si mesmos; quem, porém, defenderia que recém-nascidos fossem deixados à própria sorte? É preciso guiar-lhes pela mão até o momento em que tenham condições de seguirem sozinhos; Não é justo um casal de vizinhos querer vir dizer que temos que deixar nossos filhos acharem seu próprio caminho quando os deles têm trinta anos e o nosso tem apenas dois. "Quem sabe a quentura da panela é a colher que mexe". Achei muito coerentes as palavras do economista Ha-Joon Chang quando esteve no Brasil no início deste ano:
Hoje, quando olhamos para os países ricos, em sua maioria, eles praticam o livre comércio. Por isso, é comum pensarmos que foi com esta receita que eles se desenvolveram. Mas, na realidade, eles se tornaram ricos usando o protecionismo e as empresas estatais. Foi só quando eles enriqueceram é que adotaram o livre comércio para si e também como uma imposição a outros Estados. O nome do meu livro, "Chutando a escada", faz referência a um livro de um economista alemão do século XIX, Friedrich List, que foi exilado político nos Estados Unidos em 1820. Ele critica a Inglaterra por querer impor aos EUA e à Alemanha o livre comércio. Afinal, quando você olha para a história inglesa, eles usaram todo tipo de protecionismo para se tornar uma nação rica. A Inglaterra dizendo que países não podem usar o protecionismo é como alguém que após subir no topo de uma escada, chuta a escada para que outros não possam usá-la novamente.
Parece faltar aos neoliberais brasileiros uma essencial pitada de pragmatismo; Você pode, por exemplo, ser a favor do fim do protecionismo, mas se seus parceiros o praticam e você não, estará expondo seu país a um verdadeiro linchamento em praça pública. Até mesmo Olavo de Carvalho, talvez o mais influente pensador a traduzir para o brasileiro a Nova Direita que se populariza mundialmente, tem opinião similar à minha nesta questão*. O Brasil é basicamente um exportador de commodities primárias, o que sempre nos deixa vulneráveis ( lembram-se do que aconteceu com nossa cana-de-açúcar e nosso café? ), e atualmente passamos pelo que talvez seja a maior desindustrialização da história da humanidade: a participação do setor na nossa produção, que já foi de mais de ⅓, diminuiu para pouco mais de 10% e continua caindo. Não fique escravo de alguma teoria econômica da qual você seja adepto! Este é o momento de diminuir subsídios e cortar exonerações?
Quanto ao agronegócio, digam o que quiserem, é a tábua de salvação que vem impedindo o Brasil de se afundar ainda mais miseravelmente. Para o bem e para o mal, cada vez mais encarnamos o papel de "celeiro do mundo". Podemos, felizmente, avançar ainda mais no setor; Por mais urbano que eu, pessoalmente, seja, nunca podemos esquecer que o campo vive sem a cidade, mas a cidade não sobrevive sem o campo; pois eu proponho que adotar, na atual conjuntura, uma política neoliberal de diminuir os incentivos que temos, seria jogar gasolina no incêndio, verdadeiramente uma tentativa de suicídio;
Temos ainda a questão ambiental. Uma riqueza realmente única e, uma vez destruída, irrecuperável. Já perdemos nosso Museu Nacional este ano, vamos também deixar a Amazônia consumir-se? O que nos resta de Mata Atlântica? O que ainda temos de nossa preciosa e colorida cultura indígena? Não valorizar esta herança é cuspir na cara de quem nos pariu e amamentou. Lembro-me da frase atribuída ao Greenpeace que vi numa faixa em minha escola em meio à expectativa pela Eco 92, e que nunca me deixou:
Quando a última árvore tiver caído,
quando o último rio tiver secado,
quando o último peixe for pescado,
aí vocês vão se dar conta que dinheiro não se come;
Voltamos então, inexoravelmente, à questão do despreparo e inexperiência de Bolsonaro e sua equipe: falar em fundir os dois ministérios, a princípio antagônicos, já é um erro; mesmo que decidissem priorizar o agronegócio, poderiam ao menos tentar manter as aparências para não prejudicar nossas exportações com embargos de países preocupados com o meio ambiente; o mero anúncio desta medida equivocada já colocou todas as decisões do futuro presidente sobre o tema sob os holofotes do escrutínio dos ambientalistas de todo o planeta; e como se não bastasse a gafe em si, ela se repete: a fusão foi aventada durante a campanha, mediante críticas, houve um recuo. Novamente proposta após a eleição, foi novamente criticada, e novamente fala-se em recuo; Isso não é bom para o país; Estas falhas operacionais primárias também se verificam na simples comunicação com a imprensa, numa avalanche de especulações e desmentidos. Tratar a grande mídia tradicional como inimiga já de saída não pode ajudar a resolver a questão, e ainda tem cheiro de autoritarismo. Entendem porque tenho dificuldade de justificar para mim mesmo qualquer otimismo?
Pois se o próprio FMI já não teme fazer críticas ao modelo neoliberal, porque ele poderia piorar a concentração de renda e valorizar o capital financeiro especulativo em detrimento do capital produtivo e dos investimentos de médio e longo prazo;
Ainda vejo muita gente
insistindo na falácia de que privatizar é uma solução mágica; Que país
entrega a outrem as decisões sobre suas riquezas estratégicas sem pagar
um alto preço por isso? O Brasil precisa refletir e agir prudentemente com seu petróleo, a aquisição de grandes extensões de terra por grupos estrangeiros, Amazônia, Embraer, o SGDC-1 ( nosso 1º satélite geoestacionário ), a base de Alcântara, o setor elétrico... Vale a pena trocar estes coringas de nossos netos por um pouco de dinheiro hoje? Depois de 40 anos, o povo britânico viu que as promessas neoliberais da era Thatcher não se
materializaram: 76% querem reestatizar as ferrovias; 77% defendem a
retomada da eletricidade e do gás; 83% desejam a volta do fornecimento de
água estatal!
Aqui mesmo, em nosso Brasil: A Vale foi premonitória em tirar o "Rio Doce" do nome, já que a tragédia de Mariana, que ela permitiu que ocorresse e pela qual ainda não se redimiu, matou o rio que a batizara; A telefonia e a internet no Brasil, apesar do invejável grande mercado, não oferecem um bom serviço, e mesmo assim as tarifas estão entre as mais caras do mundo; Nossas agências reguladoras são ocupadas por ex-executivos do setor que deveriam fiscalizar; Em meio a uma das maiores crises de nossa história e uma inflação de 4,5% ao ano, bancos chegaram a praticar juros de mais de 400% em certas modalidades - isso legalmente! - e agora há quem comemore que tenham baixado para ( ainda incivilizados ) 280%. Insisto: em meio à nossa gravíssima crise, o lucro dos grandes bancos subiu 21% em 2017, chegando a quase 65 bilhões. Num país em que 27,7% da população está sem emprego ou subempregada, em que metade da população vive com menos de um salário mínimo, em que os 6 cidadãos ( não são 6%; são seis indivíduos! ) mais ricos detém a mesma riqueza que esta metade mais pobre de 100 milhões de pessoas, é nesse país que se fala em neoliberalismo, em menos interferência do Estado na economia, em desregulamentação? Num país onde ¾ das pessoas não têm domínio pleno da leitura e das operações matemáticas, onde escolas públicas às vezes não ensinam nem mesmo a ler e escrever; neste país onde o filho de ajudante de pedreiro é ajudante de pedreiro, a filha de doméstica é doméstica, o filho de médico é médico e o filho de juiz é juiz, é neste país que querem falar em meritocracia? Não estariam querendo instalar internet em um feudo medieval? Amigos, uma pitada de pragmatismo! Evoco mais uma vez Lacordaire: "Entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo, é a liberdade que oprime, e a lei que liberta"!
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra; Nem Estado mínimo, nem Estado máximo: Estado necessário, como diria Ciro Gomes. Em pleno ano da graça de 2018, metade da população brasileira não tem saneamento básico. O empreendedorismo individual resolve esse problema? A iniciativa privada? Veja os grandes escândalos mundiais da última década: Enron, Lehman Brothers, Bernie Madoff... todas instituições privadas. Novamente relembro-lhes de exemplos aqui mesmo do Brasil: A JBS, a Odebrecht, a OAS... são estatais? Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça! Não se deixe enganar pelo maniqueísmo, pelas frases feitas! Fuja das teorias cegas que ignoram a realidade! Cuidado para não escolher soluções rápidas e erradas! Prudência! Moderação! Diálogo! "Devagar com o andor, que o santo é de barro!". Afinal, são mais de 200 milhões de destinos sobre a mesa.
Eu também tenho críticas à postura beligerante e intolerante de Bolsonaro e parte de sua cúpula. Acho que mesmo entre seus eleitores, há quem compartilhasse de minha esperança de que fosse apenas retórica de campanha. Ainda não vemos sinais de moderação, o que é preocupante. Só para lembrar, somos o país que já teve um Esquadrão da Morte; um país que ainda não sentou para conversar sobre o que realmente significou a ditadura militar instaurada em 1964, uma omissão que voltou para assombrar-nos; o país que mais mata suas minorias sexuais, o país em que há 130 anos ainda era permitido por lei que um ser humano fosse dono de outro; um presidente com tal postura incisiva pode abrir uma sinistra caixa de Pandora, soltando as amarras de uma legião de candidatos a "guarda da esquina", conforme temidos por Pedro Aleixo.
Admirador de Trump, Bolsonaro acaba tomando uma postura de alinhamento aos americanos que não me agrada por seu tom servil. Eu mesmo já mencionei a grande admiração que tenho pelos nossos irmãos ao norte, sua história, sua cultura, e o enorme e sincero carinho que tenho por seu povo, mas um candidato à presidência de um país, nesta condição, bater continência para a bandeira de outro e puxar coro de "USA! USA!" não é uma boa postura. Comunicar-se pelo Twitter é simpático, mas não deve ser o principal canal de comunicação de um líder, e deve-se tomar cuidado com falas impulsivas: a palavra de um presidente tem peso: dizer e desmentir, declarar e recuar, por si só, podem afetar as questões de Estado.
Entre as muitas críticas de Bolsonaro ao PT, o capitão acusou-o de uma política externa com viés ideológico; Nosso presidente eleito que me perdoe, mas vendo-o falar, eu só posso concluir que ele faz o mesmo, simplesmente trocando os sinais. Em seu alinhamento com o governo americano, ele vai cometer a loucura de queimar as pontes que com tanto esforço construímos?
Eu já fico angustiado de pensar em Bolsonaro, que não vai nem a debates e sabatinas porque sabe que não se sairá bem, indo negociar algum interesse nacional com um Trump. Imagino o clima desconfortável de alguém com suas posições e histórico de opiniões indo encontrar-se com uma Merkel. Como se sairá no tradicional discurso do Brasil na abertura da Assembleia Geral da ONU? Como se não bastasse, vejo-o colocar minas terrestres em seu próprio caminho:
Trump está esboçando uma guerra comercial com a China. É sábio nós nos metermos nesta história, comprando uma briga que não é nossa com um de nossos grandes parceiros comerciais? Um editorial na versão em língua inglesa do jornal estatal, o China Daily, já demonstrou a irritação de Beijing com a postura de nosso presidente eleito, e avisou Bolsonaro que adotar uma postura de alinhamento com Trump e não respeitar os acordos com a China pode ser danoso à economia brasileira, que está tentando sair de uma grave recessão.
Bolsonaro reiterou sua promessa de campanha de que pretende transferir nossa embaixada em Israel para Jerusalém, seguindo o exemplo dos Estados Unidos e da Guatemala ( O Paraguai seria o terceiro, mas acabou revertendo a decisão ). Bolsonaro também está cercado de gente pró-Israel, incluindo Joice Hasselmann e boa parte dos líderes evangélicos. Lamento profundamente este erro: primeiramente, porque ele mancha nosso histórico diplomático de buscar o diálogo e a conciliação; Perderemos nossa invejável posição de mediador neutro: somos nós que estamos mexendo as peças no tabuleiro, nós que estamos desafiando o status quo. E pra quê? Não íamos fazer uma política externa sem viés ideológico? A qual interesse nacional prático isto serve? É um marco verdadeiramente trágico, estou torcendo para que o presidente eleito recue...
Num segundo momento, isso pode trazer complicações econômicas, na forma de sanções por países árabes: nossa exportação de frango pode ser bastante prejudicada. Temos ainda a possibilidade de virarmos alvo de retaliações violentas, de terrorismo. Tudo por um inepto capricho ideológico / religioso... Mais uma vez o despreparo de nosso presidente e de sua cúpula me deixa preocupado.
Bolsonaro também dá a entender que continuará, como Temer, virando as costas para a Venezuela, em mais uma demonstração de falta de visão geopolítica e estratégica de sua equipe. Independentemente de sua opinião sobre o regime Maduro, não poderíamos fazer muito bem com uma aproximação? Não foi o que os Estados Unidos conseguiram fazer com nossos irmãos chineses ao longo dos anos 1970, com a visita de Nixon, notório anticomunista, à China de Mao, partidas de pingue-pongue e, finalmente, gradual abertura do mercado sob Deng Xiaoping? Pois virar as costas para nossos irmãos neste momento de dificuldade, além de uma vergonhosa falta de solidariedade, só agravará sua crise interna, o que acaba derramando-se em mais problemas e conflitos e até em lamentáveis incidentes de xenofobia em nossa própria e desamparada Roraima. E não esqueçamos a geopolítica: precisando de ajuda, abandonado por nós, Maduro volta-se agora para China e Rússia, trazendo-os para nossa vizinhança. Em contrapartida, Trump flerta com a Colômbia, vizinha e rival da Venezuela, acenando com sua entrada na OTAN, tudo isto bem aqui ao lado; É sábio continuarmos de costas enquanto estas forças se mexem no tabuleiro em que estamos? Obrigam-me a mais uma vez apelar para uma pitada de pragmatismo.
Isto é só para começo de conversa; também escuto temerosas propostas em outras áreas: Reforma da Previdência? Precisamos urgentemente de uma, mas devemos pedir ao duque que abra mão de um de seus castelos antes de pedir ao camponês que entregue metade de seu pão; Criacionismo? Sim, na aula de filosofia; Educação Sexual? Sim, de forma
adequada à faixa etária, para evitar doenças, gravidez precoce e
pedofilia; "Escola sem Partido"? Escolas Militares? Ampliar as excludentes de ilicitude? Facilitar o porte de armas? Priorizar o enfrentamento na ponta final, no varejo, em detrimento da inteligência? O Coliseu está pedindo mais sangue?
Mesmo assombrado por tantas inquietações, inclusive as de ordem pessoal, continuo rezando pelo nosso presidente eleito; Que minhas preocupações não passem de alarmismo, que os problemas não se concretizem, que tenhamos uma pacificação nacional, e que Deus conduza Bolsonaro. Por favor...
* Olavo de Carvalho | Protecionismo
https://www.youtube.com/watch?v=Wo_nXzS5Gpc
Fontes:
A lúcida entrevista de Ha-Joon Chang ao "El País":
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/05/economia/1515177346_780498.html
Algumas objeções ao neoliberalismo, por pesquisadores do FMI (em inglês):
https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/pdf/ostry.pdf
Artigos em jornais ingleses questionando as privatizações no país (em inglês):
https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jan/09/nationalise-rail-gas-water-privately-owned
https://www.independent.co.uk/voices/privatisation-failure-energy-water-railways-public-services-take-back-control-labour-john-mcdonnell-a7775216.html
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