quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Hebe e a Memória da Televisão - Um Apelo (01OUT2012)

   Nós não sabemos quem foram os primeiros atores da história. Não sabemos os nomes dos primeiros músicos e dançarinos. Mesmo dos tempos pioneiros do cinema e do rádio temos registros limitados. A televisão, infelizmente, também se preocupou mais em crescer do que em preservar seus primeiros passos. O que ainda temos sobrou quase que por acidente.
   Isso é mais um motivo para lamentar o falecimento de Hebe Camargo: perdemos um grande arquivo vivo; alguém que assistiu, sempre da primeira fila, aos 62 anos que a televisão brasileira percorreu até aqui.
   Preparando as merecidas homenagens, as emissoras vasculharam seus acervos pelos grandes momentos de Hebe. Estamos revendo muitas imagens dos últimos 30 anos, mas e a primeira metade de sua carreira? Com exceção de uns pouquíssimos fragmentos repetidos à exaustão, lamento dizer que foi apagada ou que está virando pó em algum armazém trancado.
   Neste momento de luto, muitos repetem que Hebe não será esquecida. Não é leviano, porém, fazer tais promessas quando continuamos mostrando tão pouco respeito por nossos artistas? Quando nossos ídolos de outrora continuam sendo resumidos a alguns textos e fotografias?
   A televisão já é por si um meio efêmero: poucos conseguem manter a fama por mais que alguns anos na grande corrida para atrair o público. Há os que têm a sorte de nascer com talento ou carisma para justificar algumas décadas de atividade, e há casos raros em que aparições esporádicas e homenagens continuam até o fim da vida, e mesmo além dele.
   No Brasil, a situação é pior ainda: 15, 20 anos de carreira significam aposentadoria compulsória para a maioria absoluta, e pouca gratidão demonstramos àqueles que enriqueceram nossos cotidianos com sua arte. Muitos são enterrados em vida pelas emissoras, mesmo grandes talentos. Só para mencionar algumas unanimidades, com que frequência você vê Chico Buarque na televisão? Maria Bethânia? Cauby Peixoto e Ângela Maria? Artistas realmente extraordinários, alguns com várias décadas de carreira e depositários de verdadeiro tesouro em talento, carisma, e mesmo histórias curiosas e engraçadas.
   Sabe o destino que eu e você reservamos para eles? Esperamos que eles nos deixem, catamos apressados alguns segundos de filme para exibir a título de homenagem, e os substituímos por gente que muitas vezes tem pouco para oferecer.
   Não sei como me justificar perante as futuras gerações por não termos dado o valor devido a eles. Como me desculpar por não lhes prestar o respeito que já conquistaram? Como explicar que, havendo várias emissoras no ar 24 horas por dia, não pudemos dispor de algumas dessas horas para registrar melhor sua passagem por nosso mundo? Só me resta baixar a cabeça, pedir desculpas e tentar fugir da responsabilidade dizendo que foram outros, aqueles que tomam as decisões, que escolheram esta maneira de fazer as coisas.
   Talvez o mais triste não seja a aparente falta de interesse do grande público, mas que aqueles que podem fazer algo ignorem tal missão de forma tão convicta, dolosa, e que tais artigos, mesmo quando existem, não sejam disponibilizados para os que têm, sim, interesse.
    Falam em batizar algum estúdio com o nome de “Hebe”, e em outros tipos de homenagem, sem dúvida merecidas. Creio, porém, que o maior tributo que se pode prestar a um artista é preservar sua memória. Garantir que daqui a muitos anos, mesmo quando nós e todos aqueles que conhecemos já estivermos mortos, as pessoas ainda possam conhecer o trabalho dele. Certificarmo-nos de que, caso algum de nossos descendentes pergunte “O que fez desse artista alguém especial?”, ele tenha a oportunidade de procurar a resposta em meio a horas e horas de um grande acervo.
   Talvez na China, no século X, tenha vivido uma cantora de voz tão bela que simplesmente escutá-la levava os ouvintes às lágrimas. Talvez na Índia, há 500 anos, houvesse ator tão hábil que fosse capaz de trazer qualquer espectador para dentro da realidade de seu papel. Não nos é dado saber com certeza, pois não havia meios de registrá-los exercendo sua arte. A tecnologia nos permite fazê-lo agora, mas rotineiramente e levianamente negligenciamos tal possibilidade.
   Seria tarefa tão hercúlea criar um Museu da Televisão? Investir o suficiente para preservar e disponibilizar este material, sem depender de iniciativas pessoais de uns poucos pioneiros ou colecionadores apaixonados, e de seus limitados recursos? Garantir que a Cinemateca Brasileira, o Museu da Imagem e do Som, a Biblioteca Nacional e instituições similares tenham orçamento e equipe suficiente para fazer seu trabalho de maneira digna? Centralizar este material, inclusive nossas antigas dublagens, também tão negligenciadas, em um grande Banco da Memória Nacional, cada vez mais acessível? O Brasil está caminhando rumo ao desenvolvimento, e já temos recursos financeiros e tecnológicos para viabilizar tal empreitada. Espero que as autoridades e empresários do ramo acordem para esta iniciativa a tempo: Não há dinheiro ou especialistas que possam restaurar um material que já não existe;
   Neste exato momento, fitas e rolos de filme da Rede Tupi, a primeira emissora de TV do Brasil, estão apodrecendo em algum galpão empoeirado.

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